segunda-feira, 31 de agosto de 2009

você conhece Albertina?








foto maritza caneca

 

Um poço de negatividade, se eu tivesse que traçar um perfil, eu só diria isto. Sabe o que eu escutei? Ela disse assim: “hoje em dia, se eu fosse casar eu já ia sem útero”. Depois, ela contava que não via os filhos há não sei quanto tempo, que os filhos brigavam o tempo inteiro. Até no hospital, quando acordou, após passar por uma cirurgia de safena, ela soube que eles estiveram por lá e haviam brigado muito. 

Vinda do interior do Maranhão, Albertina se casou aos treze anos. O noivo, ela conheceu pouco antes da festa.  Aos vinte, se mudou para o Rio de Janeiro com o marido, dois filhos e grávida do terceiro. Nunca trabalhou fora de casa, nunca lhe faltou nada, mas sempre lhe faltou tudo. Em primeiro lugar: agradecer; em segundo: se afeiçoar. Amar, nem entraria na lista, de tão longínquo da vivência dessa mulher, que agora, chegava perto de fazer setenta anos.
Mesmo sendo católica e fervorosa, pelas suas palavras já teria deixado este mundo, que “não vale nada”. Não sei se por falta de coragem, ou medo do castigo derradeiro, ela foi seguindo. O marido, que não era rico, foi ficando, virou gerente de banco, lhe deixou uma boa pensão. Os filhos estavam formados e encaminhados.  “Não sei aonde a gente estava com a cabeça que colocou os três para morarem na mesma rua, todos perto. Só para brigarem mais!”

Uma das manias de Albertina era tomar banho, isso significava lavar a cabeça. Não admitia jamais um chuveiro e uma touquinha. Talvez por isso seus cabelos curtos estivessem tão ressecados. A dona do salão que ela frequentava, já havia lhe oferecido uma hidratação, mas nada. Aliás, ela resolveu até mudar de salão, pois descobrira um outro em que a manicure cobrava dois reais a menos. Ela tinha uma fixação com perfumes e cheiros, se cismasse que os pés estavam com um xulézinho, lá ia Albertina para o chuveiro e se molhava toda e passava xampu pela segunda vez naquele dia.

Após sua última viagem, resolveu que nunca mais iria sair de casa para passear. Levou três dias para chegar ao destino. O aeroporto parou, um acidente aéreo a fez ficar logo na primeira escala, em São Paulo. Em seguida, quando passava por Brasília, aconteceu uma pane no avião que ela pegaria para o Maranhão. Ela teve que permanecer uma noite naquela cidade que ela odiou, sem nem sair do aeroporto. Como falava num tom arrogante, os funcionários da empresa aérea, jamais atendiam a seus pedidos. Ao chegar ao seu destino, a casa de uma prima, numa fazenda a vinte kms de São Luiz, Albertina começou a sentir uma dor de dente terrível. E o que seria descanso virou uma aporrinhação. Terminou com um dentista lhe arrancando o dente, pois ela se recusara a pagar o preço do canal. 

Ela adorava dizer que se quisesse teria feito isto ou aquilo. Por exemplo: “se eu quisesse teria casado de novo, tive duas propostas. Se eu quisesse teria ido pra Europa, a Cecília me chamou, o preço estava até bom, mas aconteceu isso, isso e aquilo e eu acabei não indo. Se eu quisesse eu tinha carteira para dirigir, na época meu marido até queria me dar um carro. Se eu quisesse teria comemorado meu aniversário, fechava aquele restaurante e convidava um monte de gente.” E por aí ia, uma lista imensa.

Depois de um AVC e cinco safenas,  Albertina caminhava normalmente. Não fosse o braço direito que perdera o movimento, ela não  pagaria a alguém para que a acompanhasse o tempo inteiro. A moça que fazia o serviço, precisava muito daquele humilde salário e deveria cozinhar, arrumar, lavar, passar e levá-la à fisioterapia e ao salão. Contudo, ela andava sempre com as unhas bem feitas. O cabelo, ela mesmo arrumava, pois seu excesso de zelo, não permitia que ela gastasse um pouquinho a mais com uma tintura ou uma escova.

Agora, Albertina precisava encontrar uma outra acompanhante que deveria fazer tudo, e ainda sobrava tanto tempo.... “só nós duas”, ela dizia, “e se você visse o quanto eu acabo gastando com comida naquela casa”. Como ela sempre achava que estava sendo roubada, escondia algumas coisinhas no armário de roupas: uma lata de leite condensado, um litro de azeite, um vidro de azeitonas. Os filhos não tinham tempo para ajudá-la em nada, dois meninos médicos e a filha advogada. No entanto, uma sobrinha desempregada, que vivia muito apertada de dinheiro, de vez em quando ia visitá-la e era convidada para jantar. Ah, ela não deixava a sobrinha nem entrar na cozinha, pedia para a moçinha fazer o prato delas, esquentar no microondas e trazer até a mesa de jantar.

Mas este era o último dia de trabalho de Amanda. Ela já havia pedido as contas. Fora a única que conseguira ficar mais de dois meses naquela casa.  Até porque, estava pagando uma pequena dívida que tinha com seu cunhado. Ao invés de fazer uma comida de qualquer jeito, afinal de contas, estava indo embora mesmo. Amanda cozinhou tudo com o maior capricho, a carninha moída estava uma delícia! O suflê de chuchu também estava muito bom. Quando a sobrinha de Albertina foi embora, pediu para falar com Amanda que já havia arrumado a cozinha e estava deitada no seu pequeno quarto. E foi assim que Amanda respondeu quando a sobrinha lhe perguntou porque não continuava trabalhando na casa da tia. “A senhora sabe, eu cuido de tudo bem direitinho, tudo meu é feito com carinho. Mas a sua tia, a senhora me desculpe, mas vou falar, a sua tia tem uma coisa tão ruim, coitada, uma coisa que espalha pra tudo em volta, eu prefiro até trabalhar mais em outra casa, porque aqui, a gente vai ficando triste, sem acreditar, parece que nada presta, nada tem solução”. 

Você conhece Albertina? Olha, não confunda essa com a minha falecida tia Albertina, essa é outra. E o Albertina*, você conhece? É um museu lindo, lá em Viena. 



 foto g secchin



Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.

Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.



Odes de Ricardo Reis (Obra completa de Fernando Pessoa, Editora Nova Aguilar)
* Museu Albertina : http://www.albertina.at

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

disse alguém que há bem no coração


Um amigo alertou: não perca este encontro. O Poesia em Foco vai acontecer dia 30 de julho no Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ – Você tem que ir!  Alguns dos melhores poetas da cidade estarão reunidos no Salão Dourado, na Praia Vermelha. E estavam.

Antônio Cicero
Armando Freitas Filho*
Claudia Roquette–Pinto
Eucanaã Ferraz
Paula Glenadel
Paulo Henriques Britto**


foto g secchin

No Retrovisor de Armando,
a emoção aflora aos olhos.
O Diamante de Cicero
calca a palavra repartida.*

Goza o instante, ele não vai durar. **

Paulo revela: “quando você traduz, você realmente lê.”

Nas indagações de Claudia fica claro:
estava habituada à concentração do poema,
e ao experimentar a prosa,
“é como se estivesse perdendo sangue,
morrendo, não sei aonde vou parar.”

No mundo de Eucanaã,
“o importante é a capacidade de cristalizar,
dar corpo às ideias, apreender
e formar alguma coisa que é você.”

E o Móbile “era lindo, era fácil era puro.”

Como disse Armando, “a gente faz parte desse rio
que vem de Mário de Andrade.
Você fica contaminado, como uma caxumba, uma catapora.
Acho bacana que o cara fique sarapintado de um Drummond,
                                                                    de um João Cabral.
Você tem que ter orgulho dessa cicatriz.
E quando vemos uma mancha gráfica,
pensamos: é prosa.”
Nem sempre.

“Desejando que a pedra parta da pedra.”
O amor de Paula está na literatura francesa.
Exerce fascínio a Nadja de Breton.***

Para Cicero, “quando o poeta está presente, o filósofo se retira.
Quando o filósofo está presente, o poeta nem chega perto.
Mas a paixão pela poesia sempre permanece.

E os poetas pensaram o mundo no livro de Adauto.”****
Em Balanço, inédito,
“A infância não foi uma manhã de sol.
Antes de ser adulto serei velho.”

Pois é, Armando, também quero crer
que poesia não tem aposto.
Concordo que “sempre que a gente não faz
é porque a gente não soube.
E cada um é cada um.”

Como descreveu Antonio Candido –
não em público, em carta:
“você não registra, você delibera.”
Impressionado, o poeta afirma:
“As coisas que Candido diz,
a gente tem que ficar pensando nelas a vida inteira.”
  
Quantos poetas já falaram da pedra?
E segue um Torpedo de Armando:
“A natureza erra.”



 técnica mista sobre papel g secchin


Quem esteve presente agradece às poetas Paula Padilha e Lígia Dabul pela organização.  E ao Congresso de Sociologia por acolher esta noite de Poesia em Foco.

Diamante, Retrovisor, Móbile e Balanço são títulos de poemas dos respectivos poetas.


***Nadja de Andre Breton, tradução Ivo Barroso,  Editora Cosac Naify, 2007.
****Poetas que pensaram o mundo, organização de Adauto Novaes, Editora Companhia das Letras, 2005.

Título, Disse Alguém (All of me, Gerald Marks and Seymour Simons-1931)
Versão em Português de Haroldo Barbosa.