terça-feira, 28 de maio de 2013

daqui pra frente, tudo vai ser diferente




foto maria teresa moreira




Nada voltará ao normal,
mesmo que você siga a estrada da capital secreta,
abrace a árvore da infância,
escute no rádio aquela música,
aquela música linda
do ensaio da lira de ouro.

Exílio de praia e de montanha,  
rastro de metal pesado,
poluição vampiresca,
cera quente na derme lúcida.

Crivo forte,
desesperadamente crítico,
implacavelmente arrasador,
destrambelha no inconsciente
vento uivante em soberba,
rígido demais, atônito, desconcertante,
captura, maltrata, ignora,
nem sempre nessa ordem.

Isca para anzóis de fino trato, 
inadequação a grosso modo.
Cuidado, senão vira terreno de escaras...

Do outro lado da cerca não cabe retorno,
não cabe retorno
no desgaste mórbido de órbitas ofendidas.



 Arame Farpado é um poema inédito





foto maria teresa moreira





No decorrer dos dias,
possíveis brechas,
recolhem-se sombrias
em pleno céu outonal.

O fato fútil,
a fala desviada,
unanimidades burras
transbordam ao sol da manhã,

ninguém se abraça,
ninguém atravessa a rua,

o nada acossando
o mundo partido,
suspenso,
sem palavra.



Nublado é um poema inédito





"Sou um homem quieto, o que eu gosto é ficar num banco sentado, entre moitas, calado, anoitecendo devagar, meio triste, lembrando umas coisas, 
umas coisas que nem valiam a pena lembrar."

Rubem Braga




Tanto que tenho falado, tanto que tenho escrito - como não imaginar que, sem querer, feri alguém? Às vezes sinto, numa pessoa que acabo de conhecer, uma hostilidade surda, ou uma reticência de mágoas. Imprudente ofício é este, de viver em voz alta.

Às vezes, também a gente tem o consolo de saber que alguma coisa que se disse por acaso ajudou alguém a se reconciliar consigo mesmo ou com a sua vida de cada dia; a sonhar um pouco, a sentir uma vontade de fazer alguma coisa boa.

Agora sei que outro dia eu disse uma palavra que fez bem a alguém. Nunca saberei que palavra foi; deve ter sido alguma frase espontânea e distraída que eu disse com naturalidade porque senti no momento - e depois esqueci.

Tenho uma amiga que certa vez ganhou um canário, e o canário não cantava. Deram-lhe receitas para fazer o canário cantar; que falasse com ele, cantarolasse, batesse alguma coisa ao piano; que pusesse a gaiola perto quando trabalhasse em sua máquina de costura; que arranjasse para lhe fazer companhia, algum tempo, outro canário cantador; até mesmo que ligasse o rádio um pouco alto durante uma transmissão de jogo de futebol... mas o canário não cantava.

Um dia a minha amiga estava sozinha em casa, distraída, e assobiou uma pequena frase melódica de Beethoven - e o canário começou a cantar alegremente. Haveria alguma secreta ligação entre a alma do velho artista morto e o pequeno pássaro cor de ouro?

Alguma coisa que eu disse distraído - talvez palavras de algum poeta antigo - foi despertar melodias esquecidas dentro da alma de alguém. Foi como se a gente soubesse que de repente, num reino muito distante, uma princesa muito triste tivesse sorrido. E isso fizesse bem ao coração do povo, iluminasse um pouco as suas pobres choupanas e as suas remotas esperanças.

A Palavra, crônica de Rubem Braga publicada em Histórias do Homem Rouco, Coleção O DIA



título:  Se Você Pensa de Roberto Carlos e Erasmo Carlos