Nada voltará ao normal,
mesmo
que você siga a estrada da capital secreta,
abrace
a árvore da infância,
escute
no rádio aquela música,
aquela
música linda
do
ensaio da lira de ouro.
Exílio
de praia e de montanha,
rastro
de metal pesado,
poluição
vampiresca,
cera
quente na derme lúcida.
Crivo
forte,
desesperadamente
crítico,
implacavelmente
arrasador,
destrambelha
no inconsciente
vento
uivante em soberba,
rígido
demais, atônito, desconcertante,
captura,
maltrata, ignora,
nem
sempre nessa ordem.
Isca para anzóis de fino trato,
inadequação
a grosso modo.
Cuidado,
senão vira terreno de escaras...
Do
outro lado da cerca não cabe retorno,
não
cabe retorno
no
desgaste mórbido de órbitas ofendidas.
Arame Farpado é um poema inédito
No
decorrer dos dias,
possíveis
brechas,
recolhem-se
sombrias
em
pleno céu outonal.
O
fato fútil,
a
fala desviada,
unanimidades
burras
transbordam
ao sol da manhã,
ninguém
se abraça,
ninguém atravessa a rua,
o
nada acossando
o
mundo partido,
suspenso,
sem
palavra.
Nublado é um poema inédito
"Sou um homem quieto, o que eu gosto é ficar num banco sentado, entre moitas, calado, anoitecendo devagar, meio triste, lembrando umas coisas,
umas coisas que nem valiam a pena lembrar."
umas coisas que nem valiam a pena lembrar."
Rubem Braga
Tanto que tenho falado, tanto que tenho escrito - como não imaginar que, sem querer, feri alguém? Às vezes sinto, numa pessoa que acabo de conhecer, uma hostilidade surda, ou uma reticência de mágoas. Imprudente ofício é este, de viver em voz alta.
Às
vezes, também a gente tem o consolo de saber que alguma coisa que se disse por
acaso ajudou alguém a se reconciliar consigo mesmo ou com a sua vida de cada
dia; a sonhar um pouco, a sentir uma vontade de fazer alguma coisa boa.
Agora
sei que outro dia eu disse uma palavra que fez bem a alguém. Nunca saberei que
palavra foi; deve ter sido alguma frase espontânea e distraída que eu disse com
naturalidade porque senti no momento - e depois esqueci.
Tenho
uma amiga que certa vez ganhou um canário, e o canário não cantava. Deram-lhe
receitas para fazer o canário cantar; que falasse com ele, cantarolasse,
batesse alguma coisa ao piano; que pusesse a gaiola perto quando trabalhasse em
sua máquina de costura; que arranjasse para lhe fazer companhia, algum tempo,
outro canário cantador; até mesmo que ligasse o rádio um pouco alto durante uma
transmissão de jogo de futebol... mas o canário não cantava.
Um
dia a minha amiga estava sozinha em casa, distraída, e assobiou uma pequena
frase melódica de Beethoven - e o canário começou a cantar alegremente. Haveria
alguma secreta ligação entre a alma do velho artista morto e o pequeno pássaro
cor de ouro?
Alguma
coisa que eu disse distraído - talvez palavras de algum poeta antigo - foi
despertar melodias esquecidas dentro da alma de alguém. Foi como se a gente
soubesse que de repente, num reino muito distante, uma princesa muito triste
tivesse sorrido. E isso fizesse bem ao coração do povo, iluminasse um pouco as
suas pobres choupanas e as suas remotas esperanças.
A Palavra, crônica de Rubem Braga
publicada em Histórias do Homem Rouco, Coleção O DIA
título: Se Você Pensa de Roberto Carlos e Erasmo Carlos