segunda-feira, 13 de outubro de 2014

eu vi chover, eu vi relampear






foto solange casotti



O nome dela era Marta, teve cinco filhos e morava em Mesquita. Quando o filho de 18 anos foi preso ela começou a adoecer. Alta, mais de 1.80m,  parecia saída de um quadro de Di Cavalcanti. Um corpo de violão, traços fortes, uma chiqueza natural que fazia com que suas roupas ficassem bem com as sandálias coloridas, brincos e pulseiras que gostava de usar.

Levava duas horas e meia para chegar ao trabalho. Era manicure num pequeno salão em Ipanema. A patroa a tratava bem e a pagava corretamente. Todos os dia, ela enfrentava o metrô lotado. Deixava o mais novo de 5 anos por conta da avó. A outra de 8 ficava por conta da filha mais velha que tinha problemas mentais, mas já era mãe de um menino.

De vez em quando aparecia no batidão do funk do fim de semana. Depois da prisão do mais velho, só  pensava numa maneira de tirá-lo de lá, nas visitas e no que poderia levar para agradá-lo.

No salão, todos começaram a notar como estava cada vez mais magra.  A pele estourava com furúnculos. Nada a apetecia. Teve esperança, o menino ia sair da prisão. Uma cliente deu dinheiro para uma consulta em Copacabana. O dinheiro acabou comprando uma bermuda para o filho que saia da prisão.

Marta começou  a notar que o outro filho de 16 estava gastando, chegava em casa com comida e roupas novas, sabia que também estava no tráfico, conversava pouco. Pensava no que ela podia oferecer.

O mais velho voltou, saiu da prisão. Não durou um mês, vieram avisar. O corpo estendido no asfalto. Foi polícia? Foi traficante?

Depois dos trâmites e enterro, Marta sem comer, pesava sessenta quilos.
Tirou as férias que tinha direito e pouco levantava. A filha com problemas mentais trazia comida, ela não conseguia comer. O pequeno fazia um carinho antes de ir para a casa da avó. Vontade nenhuma. Nem a irmã, nem o ex-marido apareciam. A vizinha a levou para o hospital. Dois dias depois a filha a tirou de lá, assinando um termo de responsabilidade. Entraram no metrô, Marta fraca, pensou que queria ver os outros filhos, mas seria melhor ficar no hospital.

A dona do salão ligou. A filha disse que Marta não podia falar. Na semana seguinte, a dona do salão ligou, ela não podia falar. Aos 47, com 45 quilos, Marta morreu em casa. Depois veio o ex marido, saber se tinha direito a algum dinheiro para o filho.




foto solange casotti





Jardim para Octavio Paz 






Essa vibração verde é uma planta envolta em ar
este verde é o ar que perfuma
este perfume é a linguagem da planta

                        Eu não sou nada
                        se não sou a planta
                                                            o ar
                                                                        a fragrância

e nada é nada
se não se vê que nada é nada
                        aqui
                        agora
Um menino brinca no gramado
escolhe uma árvore
                        outra
                                    outra
vai de uma árvore até o meio do jardim
corre até outra árvore
                                                até outra
volta ao centro

Um pássaro canta
e lá de fora
árvores menino e pássaro
não são isso

Lá de fora é
de dentro
para quem olha como quem
ama
                        como quem
luta
como quem
passa através de nenhum
                                    obstáculo

A prova mais dura
o salto que consiste em
ficar imóvel à margem da
plenitude sem margens
que
(a plenitude)
não existe como imagem nem suporte

E então
           o menino chega até a árvore
e se entende que não havia pássaro cantando
que o canto era esse nome
que recebe esse ato
para quem está olhando como quem
ama
            como quem
vive
            como quem
sabe que as árvores
a verde vibração
que é a planta
            envolta em ar
o salvam de ser aquilo
que todo o resto insiste em dar-lhe
a partir de sapatos
                        mulheres
                                    espetáculos
                                                            dias
O que olha é agora o olhado
mas o menino
                        escolhe novamente uma árvore
corre e retorna
e outra vez corre e volta

O olhado fica para lá
e o que olhava volta a ser
aquele que olha

Até que algum dia quem sabe
Até que não haja retorno


Poema de Julio Cortázar, traduzido por Ari Roitman e Paulina Wacht publicado em “Último Round”, ed. Civilização Brasileira, 2008


Marta é um conto inédito
 título: "nem ouro, nem prata" Ruy Maurity e José Jorge 




sábado, 23 de agosto de 2014

bim bom bim bim bom bom




Quem será a moça do telefone vermelho
e do casaco perestroika?
Qual será a sílaba boba que insiste em perturbar?
Quem será o sábio e o ignorante?
Onde estará a pele e a essência,
o estímulo e o orgulho,
a perspectiva e o sonho,
o feijão e a mesa,
o bife?



Para as ciências a contradição não é um lugar onde se pode ficar à vontade. Nas artes e na linguagem poética, o autor é guardião de um outro tipo de conhecimento, onde há condições de conjugar diferentes realidades. Enquanto o espírito científico não aceita analogias e metáforas, o espírito poético permite preservar a multiplicidade, nele convivem solidão e comunhão. Ele permite escutar a “outra voz”, deixar que a sua voz seja invadida por uma outra, aquela que os gregos localizavam numa esfera transcendente e que pode ser a descoberta da sua própria. A voz alheia sempre continuará sendo algo que nos desafia. Ser é  linguagem – como o tempo, ela nos constitui, nos atravessa. Será que através dela seria possível um outro estar no mundo?




foto gsecchin


São 5 anos do blog tectônicas e 7 do livro Tectônicas ( ed. Bem-te-Vi, Rio de Janeiro, 2007). São mais tantos anos de atividade poética. A grande diversão de escrever esse blog é que além de publicar o poema mais recente, há um trabalho de edição que também gosto muito. Cada verso do poema abaixo é um verso de uma canção brasileira de diferentes autores, cada um é um post desse blog que você está lendo. 





tô ensaboando
verdadeiro ra ra ra
isso aqui ô ô, é um pouquinho de brasil iaiá
quero chorar não tenho lágrimas
no tabuleiro da baiana tem
coisa nº4
esse papo já coisa tá qualquer coisa
que é meu balangadã?
como é bom poder tocar um instrumento
você sabe que a maré não está moleza não
eu quero é botar meu bloco na rua
daqui pra frente, tudo vai ser diferente
me dê motivo
pro dia nacer feliz
não deixe o samba morrer
diz que deu, diz que dá
enquanto eu corria assim eu ia
todo dia era dia de índio
desejo, necessidade, vontade
pneu furou, acenda o farol
quem me dera agora eu tivesse uma viola pra cantar
alguma coisa está fora da ordem
vou me embora desse mundo de ilusão
de noite na cama eu fico pensando
não, não pode mais meu coração
quem é você que não sabe o que diz?
bananeira não sei, bananeira será
o amor, o sorriso e a flor
e cada verso meu será pra te dizer
o tempo rodou num instante
hô-ba-lá-lá
um vento bateu dentro de mim
ah! se o mundo inteiro me pudesse ouvir
besta é tu, besta é tu!
além do horizonte existe um lugar
ziriguidum, ziriguidum, ziriguidum
a sorrir eu pretendo levar a vida
lá vai o trem sem destino
caía a tarde feito um viaduto...




rené magritte


Um exercício poético!
Cinco anos do blog tectônicas!
Quando o blog fez um ano, postei:





título “bim bom” de João Gilberto




segunda-feira, 30 de junho de 2014

tô ensaboando




fiz uma rosa contemporânea
com um compasso

não cheira
nem sonho com ela

fiz um sonho com duas linhas
mas não acordo
nem sinto os olhos

fiz um quadrado
com a rosa dentro
nas duas linhas

e estava escrito meu desalento



poema de Fernando Lemos publicado em Fernando Lemos Percurso, Editora Bei, 2010




Substantivo e Verbo


                                             para mim o desenho se liga ao pensamento 
assim como a cor se liga à sensação
                                                                                                                    Richard Serra


ver
pensar
sentir
desenhar
articular
se perder
colorir
confrontar
delinear
gravidade
criar
serendipidade
platôs
passagens


Substantivo e Verbo é um poema inédito 





foto gsecchin








Do sentido à palavra,
da luz ao trovão,
da garganta seca
à metafísica da voz,

o corpo fluía na sequência,
amava no presente amor
não sei se puro, sagrado ou certo
não sei se certeza alguma,

aprendia como respirar,
liquefazendo a loucura
da polaridade do self
ao centro da cabeça.

É claro que só depois articulava,
e em meio a tantos retratos gritava:
Selfi-se quem puder!
Fodam-se para sempre!








foto gsecchin




O Cemitério de Praga


 

Ressonâncias de um canto de rua
de todas as idades.
Entre cidade alta e cidade baixa
As flores desabrochadas de crocus, malvas em sua passagem,
pensam ainda no seio do sol –
Quantas imagens se apressam em cavar seus passos, revestir as
calçadas,
de pergaminhos silenciosos

Pedras
Pedras são rostos
Rostos
São pedras
Pedrasrostos cinza amarelados
Desmoronados
Face ao sol, face a chuva
A súplica emudecida, a espera ratificada
Ruas
Ruas, são pedras
Pedras Rostos Ruas
São caminhos que mentem
Em promessas que se calam,
em sangue em poeira
que perduram




Poema de Penelope Galley traduzido por Solange Casotti


Le Cimetière de Prague





Résonances d’un coin de rue,
de tous les âges
Entre ville haute et ville basse
Les fleurs écloses de colchique, mauves de leurs trépas,
pensent encore au sein du soleil —
Que d’images s’em pressent pour creuser leurs pas, joncher les pavées
de parchemins silencieux
Pierres
Pierres, ce sont des visages

Visages
Ce sont des pierres
PierresVisages gris jaunes
Effritées
Face au soleil, face aux pluies 
La supplication muette, l’attente entérinée
Rues
Rues, ce sont les pierres
Pierres Visages Rues
Ce sont des chemins qui mentent
Des espoirs qui se taisent,
des saignées de poussière
qui perdurent

Poema de Penelope Galley


título: Ensaboa de Cartola